Desde 1996, a jornalista, pesquisadora e artista visual Denise Camargo pertence a duas famílias, uma de sangue e outra de santo, esta proveniente do candomblé. Anos antes, quando criança, escutava xingamentos racistas disparados contra ela e as irmãs, por vizinhos que se empoleiravam no muro de casa, na periferia de São Paulo.
E é agora, mostrando o interior do terreiro que frequenta – a Casa das Águas, em Amador Bueno (SP) – e devolvendo as ofensas com críticas à discriminação racial, que Denise apresenta fotografias na exposição E o silêncio nagô calou em mim, aberta até meados de abril, no Centro Cultural Fiesp, na capital paulista.
“A gente tem muito trabalho pela frente, porque eu corria para dentro de casa e agora eu não preciso mais, eu posso correr para dentro da galeria e colocar lá o meu trabalho. Isso é de uma grandeza incrível”, afirma a artista.
“Esse trabalho foi parte da minha construção de descoberta de pessoa preta. Quando encontrei cadernos meus em que a professora pedia para fazer a árvore analítica, escrevi: eu, temperamento, caráter e físico. Era um estudo literário de personagens.”
Segundo Denise, o trabalho era dissecar a árvore analítica para entender as questões psicológicas, saber como ela própria se comportava e o que representava dentro da sua história.
“A primeira árvore era sobre mim. Eu já me identificava como alguém diferente, mas dizer preto, dizer negro, era algo impensável naquela infância. Então, era conveniente me disfarçar. Agora não é mais conveniente me disfarçar”, destacou, ao lembrar uma professora de língua portuguesa que a estimulou a ler e a escrever, o que foi determinante para escolher mais tarde o jornalismo.
Denise, que é também professora universitária, construiu carreira como repórter fotográfica e questiona aquilo que chama de arte “branco-brasileira”, como outros da arte contemporânea.
Para quem conhece seu nome somente agora, pode parecer que Denise Camargo é uma das artistas que desembarcaram no oceano que vem surgindo, que tem remexido as artes em suas diversas linguagens, em torno de assuntos relacionados à cultura negra e, mais especificamente, as religiões de matriz africana. Contudo, Denise tem trajetória de anos de pesquisa artística sobre o assunto, com contribuição uma bastante sólida ao letramento racial.
Exposição
A série de fotografias que compõem a exposição resulta de um estudo que desenvolveu no âmbito de seu doutorado, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O conjunto das obras, que inclui fotografias de um templo de vodu de New Orleans, nos Estados Unidos, foi exibido pela primeira vez em 2010, e contou com a curadoria de Diógenes Moura.
Segundo a artista, há aspectos que alguns candomblecistas preferem manter a sete chaves, o que, se explica por acreditarem que faz parte de uma atmosfera de encantamento, como é o caso da reclusão pela qual passam as pessoas durante a iniciação na religião.
“O fato de as religiões de matriz africana terem ficado escondidas, em razão da repressão policial, social e política, faz com que esse lugar do segredo, do sagrado tivesse que ser mantido para ser preservado. Não foi uma ocultação deliberada, foi uma ocultação necessária”, diz. Denise defende a disseminação de informações sobre a religião para aproximá-la de quem tiver o interesse despertado.
Mesmo em território familiar, Denise precisou tratar com o babalorixá do terreiro, regido por Ogum e Iemanjá, sobre a natureza do trabalho que conduziria, recebendo dele, prontamente, a autorização que precisava. Ela acrescenta que fez tudo com meticulosidade e o cuidado de evitar produzir imagens que poderiam repelir quem as visse.
A artista, que assimilou conhecimentos dos fotógrafos Mario Cravo Neto e Carlos Moreira, seu primeiro professor na área, também levou em conta, na hora de fotografar, no interior paulista, uma outra lição há algum tempo aprendida. Esta última lição, viria do fotógrafo Koldo Chamorro.
“O Koldo era um fotógrafo documentarista viajante, que ia para a África e a lugares inacessíveis. Uma vez perguntei se ele, sendo um europeu branco, não tinha dificuldade de fotografar em aldeias na África. E ele me disse que não, porque, ao pisar naquele território, tinha que pisar como africano, olhar como africano, sabendo que não era um africano. Isso me deu uma dimensão de que qualquer espaço que você vai fotografar, tem que ter a dimensão do quanto você está nesse lugar e do quanto você não está nesse lugar.”
“Eu conheci Mario Cravo Neto, em 2000, e ele foi apresentar para mim um trabalho do livro Laroyê, que lidou com a mitologia de Exu. Exu não está lá materialmente. Não é um trabalho em que ele vai fotografar o Exu incorporado nos corpos dos adeptos do candomblé. Não, ele vai para a rua encontrar a mitologia de Exu”, completou.
Para a artista, um dos elementos que capturam a atenção para a exposição é a figura de Exu na entrada do centro da Fiesp.
“Estar com esse Exu abre a exposição, um Exu em um templo de vodu, com tudo que simboliza essa instituição [da Fiesp], e acho que é a primeira vez que eles têm um trabalho dessa natureza; isso é tão representativo”, resume Denise sobre a oportunidade de ser uma das expoentes que preenchem espaços culturais com o protagonismo negro.
Serviço
Exposição: E o silêncio nagô calou em mim
Aberta até 14 de abril de 2024 , das 10h às 20h
Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp | Avenida Paulista, 1313, em frente ao metrô Trianon-Masp
Entrada gratuita
Fonte: EBC GERAL
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